A busca da Saúde através da Democracia

                                                                            

 Conheci a democracia em um evento chamado Copa da Inclusão. Trata-se de jogos esportivos e atividades diversas cujos personagens principais são a escória da sociedade, os que não produzem riqueza, os que não se adequam às exigências contemporâneas (ou nunca se adequaram à época alguma): os ditos “loucos”, usuários de serviços de doença mental da grande São Paulo.

No meio daquelas pessoas eu não era uma técnica que cumpria horas de trabalho. Eu era apenas a Luciana e estava lá para torcer, participar e me divertir. Descobri no SESC Itaquera um lugar lindo; nem parecia que estava em São Paulo. Figuras diferentes e engraçadas circulavam para lá e para cá e se apropriavam daquele espaço. Tive um encontro muito especial com o Geraldo. Estávamos sentados na arquibancada, ele com seu pandeiro na mão, muito bem vestido com uma calça de linho branco encardido que devia ter uns 15 anos, uma camisa branca amarrotada, gravata de crochê que um dia já esteve na moda e um par de sapatos furados. Muito bem aparentado era o sujeito negro, com cicatriz de queimadura por todo o rosto e orelha esquerda e sem nenhum dente na boca. Tinha as unhas bem aparadas e cobertas por base. Extremamente habilidoso com o instrumento, tentou me ensinar a batucar e logo começou a desfilar suas canções. Ouvi beleza e cotidianidade apesar do contexto doentio e miserável. Ao descobrir que sou terapeuta ocupacional Geraldo tirou de seu bolso um minúsculo pedaço de giz e folhas de papel dobradas em muitas partes que estão sempre com ele. Fez lindos desenhos animados, como chamou, com rapidez, como se os tivesse de cor. E me presenteou. Aquele artista me lembrou Artur Bispo do Rosário, o primeiro artista-louco que conheci através de livros. Me deu uma louca alegria de ter aquele encontro despretensioso e democrático. Aquilo era a mais bela demonstração de saúde que se pode ter: pessoas de classes sócio-cultural diversas, reunidas em um espaço público lindo, limpo e digno, fazendo o que tinham vontade, de forma espontânea sem geração de capital e nenhum interesse político-econômico. Naquele evento o som da saúde vinha do silêncio da natureza, da vibração da torcida e do batuque da música dos loucos. A chuva fina e o céu cinzento não foram suficientes para ofuscar o brilho dos personagens e os vários encontros produzidos.

Essa vivência me serve para estar cada vez mais atenta ao que está em minha volta. A saúde e a felicidade estão nos detalhes, naquilo que por vezes negligenciamos porque estamos em busca do grandioso, do estético-burguês, do diferenciado. Essa busca certamente trará frustrações, pois está dentro da lógica do capitalismo, que nunca teve como objetivo a democracia e muito menos a felicidade. Acredito ser a saúde o fator mais importante para termos uma boa vida. Me refiro à saúde cujo conceito está contido nesse texto, que parte da democracia, da dignidade, da inclusão. E a sua saúde, onde está?

Luciana Cordeiro

cordeiro.lu@ig.com.br


Sobre Luciana Cordeiro
Terapeuta Ocupacional especialista em Saúde Mental . Mestranda em Saúde Pública na USP. Atuação em Psiquiatria e Dependência Química.

3 Responses to A busca da Saúde através da Democracia

  1. Angela says:

    Oi Luciana. particularmente eu acho muito complicado esta questão de saúde. Trabalhei indiretamente alguns anos com crianças com diversos tiposde defiencia mental da mais leve até grave, na epoca não tinha inclusão. Percebia que aqueles alunos que os pais se interessavam por tratamento melhoraram e se incluiram na sociedade,( quero citar sairam da sala especial). Resumindo hoje convivo com pessoas com outras carencias ,desculpe não sei se está é a expressão mais correta., quero citar que não sou muito boa nas coloções de escrita. Sei que voce entende o que digo.

  2. Luciana Cordeiro says:

    Angela,

    Trabalhar com os excluídos é sempre um desafio e ao mesmo tempo extremamente gratificante. Mas acredito que a questão da saúde é anterior às problemáticas específicas de outras ordens.Na verdade o tema da exclusão foi apenas um disparador e a Copa da Inclusão uma inspiração para esse post. A saúde é algo para todos discutirem, por isso minha provocação para/com o leitor.
    Obrigada pelo comentário e, por favor, vamos continuar a discutir essas questões.
    um Abraço

  3. Iara Boccato says:

    Ótimo post como sempre, Luciana!
    abraço

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